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Antes do gramofone - a música souvenir na coleção de partituras da BNP

5 setembro 2023 | by mbaptista | categories : Iconografia, Música

“Entre meados do século XIX e o aparecimento dos primeiros gramofones na entrada do século XX, quem nas grandes urbes portuguesas queria ter acesso a uma noite de música, ia à ópera no Teatro São Carlos em Lisboa ou no Teatro São João no Porto; ou cruzava-se com a música executada em espaços informais de convivialidade, como os cafés-concertos, os coretos ou a rua. De quando em vez conseguia sentar-se num salão ou teatro para assistir a um concerto ou recital, mas era raro. Os concertos públicos não tinham ainda penetrado de forma significativa na vida musical portuguesa.  A música ouvia-se fazendo-se, e sobretudo em casa.

A Biblioteca Nacional de Portugal alberga na sua coleção de música um manancial de partituras provenientes do Conservatório, mas também de coleções particulares, muitas acumuladas em casa por gerações de pianistas amadores.

Não se trata apenas de sonatas e estudos do grande repertório de Mozart ou Beethoven, Chopin ou Mendelsshon, mas de centenas de pequenas valsas, polcas e marchas, várias com títulos curiosos e sugestivos como Souvenir de Bemfica1, Recordações de Lisboa2 ou Recordações do meu Algarve3. Outras remetem-nos para acontecimentos concretos como A expozição das flores em 18534 ou a Marcha de guerra, recordação do ataque de Marraquene5.

Recordações de Lisboa : polka para piano - pág. 1 Recordações de Lisboa : polka para piano - pág. 2

A maioria dessas partituras alimentaram a vivência íntima de quem as tocava e ouvia, repetidamente, no recato do lar. Estas “adoráveis músicas dos pianos particulares”, na designação cínica de Eça6, seguramente provocaram recordações, espoletaram emoções, sugeriram imagens, imprimiram sensações, interpelaram a memória, chegaram até a criar reminiscências de experiências não vividas, mas apenas imaginadas.

De facto, num tempo em que a fotografia ainda não era um método acessível a todos para fixar em imagem um lugar, reportar uma viagem ou captar um instante, outros dispositivos eram chamados para avivar a memória.

À sua pequena dimensão, e no contexto da intimidade doméstica, também as partituras que circulavam entre “pianos de meninas”6 procuravam explorar o universo da memória e da evocação. Não é, portanto, de admirar que encontremos amiúde em partituras para piano do catálogo da BNP, substantivos como “Recordação”, “Souvenir”, “Recuerdo”, “Memórias”, “Impressões” ou “Lembranças”.

Estas peças, e tantas outras do género que circularam pelo país e que se encontram na BNP, devolvem-nos fragmentos curiosos dum quotidiano de fim de século. Mas há uma outra dimensão, a dimensão da viagem - vivida ou apenas desejada – que podemos adivinhar quando vêm parar às coleções portuguesas títulos e edições vindas do estrangeiro. É o caso de um Souvenir d’Italie, barcarole à 2 voix7 de Charles Mercier (fl. 185-), ilustrado com uma magnífica litografia de um barco em águas serenas iluminado pela lua cheia, vendo-se à direita, entre a vegetação, uma ruína.

Souvenir d’Italie, barcarole à 2 voix - pág. 1 Souvenir d’Italie, barcarole à 2 voix - pág. 3

Com a massificação dos aparelhos de som, da fotografia e do filme ao longo do século XX, todas estas categorias de música souvenir parecem ter entrado em declínio…

E chegados a hoje, não precisamos de reconstruir ou fantasiar as experiências passadas:  as nossas memórias, e todas as músicas do mundo, andam connosco no bolso.”

Este post é um resumo da comunicação apresentada por Isabel Novais, Responsável da Área de Música da BNP, no passado dia 4 de julho de 2023, no âmbito do XII Simpósio Internacional de Musicologia (Goiânia, Brasil).
 
As comunicações da mesa-redonda “Música Souvenir” em que se integrou esta participação da BNP estão disponíveis na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=eY0PBPa2-oo

Bibliografia:

1 Katski, Anton (1817-1899), Souvenir de bemfica, polka pour le piano dediée á madame la Marquise de Fronteira, Lisbonne, Sassetti & C.ie, [185-]. BNP cota M.P. 532//39 A.
2 Crénier, Eugénie de, Recordações de Lisboa, polka para piano, Lisboa , A. Neuparth, [ca. 1865]. BNP cota C.I.C. 138 A.
3 Pinto, Luzinha (ca 19-), Recordações do meu Algarve, valsa lenta, [S.l.], Ed. da autora, cop. 1956 (Lisboa Bertrand). BNP cota M.P. 1231 A.
4A expozição das flores em 1853, polka ingleza para piano, Lisboa, J. I. Canongia & C.a, [1853].BNP cota M.P. 532//6 A.
5 Assis, Querubim António (1865-1925), Marcha de guerra, recordação do ataque de Marraquene, [S.L., [s.n.] [1896]. BNP cota C.N. 995 A.
6 Eça de Queirós, J. M. (1867), Da colaboração no “Distrito de Évora” (ed. Helena Cidade Moura), Lisboa, Livros do Brasil, s. d., vol. I, p. 267.
7 Bruxelles, Schott Frères [1855]. BNP cota F.C.R. 816//11 A.